Há uma famosa frase atribuída a Pedro Malan que diz: "No Brasil, até o passado é incerto". Embora o ex-ministro provavelmente não estivesse pensando em Incentivos de Longo Prazo (ILP) ao cunhá-la, a máxima se aplica com uma precisão aos desafios operacionais do cálculo do Total Shareholder Return (TSR).
No artigo anterior "A Ascensão do TSR como Métrica de Incentivo de Longo Prazo", exploramos como o Total Shareholder Return (TSR) se consolidou como indicador-chave nos programas de Incentivo de Longo Prazo (ILP). Discutimos a evolução das Performance Shares que usam o TSR como KPI frente aos planos de Stock OPptions, seu papel de promover o alinhamento entre participantes e acionistas e as recomendações de agências de governança sobre o tema.
Contudo, mesmo superada toda a discussão conceitual, a própria utilização da métrica gera diversas armadilhas operacionais que frequentemente são negligenciadas por quem está desenhando ou aprovando um novo regulamento de Incentivos de Longo Prazo.
Calcular o TSR parece direto na teoria, mas a prática revela complexidades, ou mesmo indefinições de regulamento, que podem, literalmente, tornar o "passado incerto", gerando dúvidas sobre a precisão do indicador no momento mais crítico: a apuração do resultado.
Aliás, não foram poucas as situações em que nós, da Pris, fomos acionados para definir a forma correta de apurar um TSR no momento da liquidação do ILP e concluímos, à luz do contrato, que mais de uma forma era adequada ou aceita.
Este artigo mergulha nos desafios práticos do TSR: o impacto de eventos corporativos, tratamento dado a variações no conjuto de peers utilizados (o que normalmente ocorre quando a Companhia utiliza TSR comparativo) e a crucial definição da fonte de dados – elementos que, se negligenciados, distorcem a métrica e abrem portas para questionamentos.
Relembrando, a fórmula clássica busca refletir o retorno total ao acionista:
À primeira vista, bastaria fixar o preço da ação na data de outorga (início), registrar o preço na data de apuração ou vesting (fim), somar os dividendos do período e aplicar a fórmula.
Num plano de 3 anos, pode parecer trivial (inclusive já ouvimos isso de decisores quando tentamos alertar sobre riscos de não se especificar os detalhes da apuração), mas o mercado real não é estático, muito pelo contrário.
Durante o período de aferição do ILP (que pode se estender por anos), a empresa e seus peers (no caso de TSR comparativo) podem realizar diversos eventos societários que alteram a estrutura de capital ou o preço nominal da ação, sem necessariamente mudar seu valor econômico instantâneo.
Além disso, elas podem simplesmente passar por eventos de M&A, fechamento de capital, entre outros. Os mais comuns incluem:
Se esses eventos não forem corretamente ajustados no cálculo do TSR, especialmente no preço inicial, o resultado será artificialmente inflado ou deflacionado, distorcendo a análise do TSR.
Ou seja, ele deixará de refletir o retorno genuíno que um acionista teria obtido mantendo o papel no período, ou a performance comparativa das ações comparativa frente aos seus peers.
Exemplo prático: o Ajuste Necessário (Ex: Grupamento)
Imagine um ILP hipotético iniciado antes de um grupamento de 10 para 1:
TSR = 650% (parece ótimo!)
Cálculo (com ajuste):
Para manter a comparação na mesma base, ou seja, comparar o retorno de uma ação pós grupamento com uma aç multiplicou o preço por 10. O preço inicial equivalente na nova base acionária seria
R$ 2,00 x 10=R$20,00R$ 2,00 x 10=R$20,00.
TSR = -25% (a realidade!)
Ignorar o ajuste levaria a pagamentos desalinhados com a experiência real do acionista. Desdobramentos e bonificações exigem ajuste inverso no preço inicial (divisão).
Outro ponto crítico: qual preço usar? Diferentes plataformas (Yahoo Finance, Google Finance, Investing.com, provedores de dados como Bloomberg, home brokers, site da bolsa de valores) podem exibir preços históricos distintos para a mesma ação na mesma data.
A principal razão é a forma e o momento como aplicam ajustes por proventos e eventos corporativos. Algumas plataformas, como Bloomberg e Yahoo Finance, frequentemente mostram preços históricos já ajustados para facilitar análises para analistas que não estão exatamente preocupados com a apuração de TSR em um Plano de ILP, enquanto outras podem exibir o preço nominal do dia ou aplicar ajustes com critérios diferentes.
É aqui que reside uma das fontes da 'incerteza do passado': se um administrador do plano de ILP registrou o preço de fechamento de uma plataforma na data de outorga ("cravou o preço inicial"), ao consultar essa mesma plataforma anos depois para verificar aquele dado histórico, o valor exibido para aquela data pode ter sido alterado devido aos ajustes por dividendos, grupamentos, desdobramento, bonificações, etc; que a plataforma realizou retrospectivamente em sua base.
Sem uma definição clara da fonte e da metodologia (se o preço a ser usado é o nominal do dia ou um já ajustado), surgem as dúvidas e potenciais contestações.
Outro ponto de atenção crítico, especialmente com plataformas como Bloomberg que oferecem diferentes tipos de séries de preços (ex: 'Price Return' vs. 'Total Return'), é o risco de dupla contagem de dividendos.
Se a curva de preços utilizada para o cálculo do TSR já incorpora o efeito dos dividendos no preço, somar novamente os dividendos na fórmula levará a uma supervalorização artificial do TSR. É essencial entender qual tipo de preço a fonte fornece e ajustar a fórmula do TSR de acordo.
O exemplo da Klabin (KLBN11) em maio de 2024 ilustra bem o problema. Após eventos como pagamento de dividendos e bonificação, diferentes fontes apresentaram valores de fechamento divergentes para as mesmas datas:
Essa diferença, que parece pequena, pode representar diferenças consideráveis na apuração do TSR, gerando enorme insegurança jurídica se a fonte e a metodologia não estiverem pré-definidas.
Se calcular o TSR absoluto já exige rigor, o TSR relativo (comparado a um índice ou grupo de pares) multiplica a complexidade. A administração do plano precisa:
Mas a complexidade não para por aí. O que acontece se uma empresa do grupo de comparação (seja do IBrX-50 ou de um grupo de pares) deixar de ser negociada durante o período de vesting? Empresas podem ser adquiridas, fundidas, mudar de bolsa ou até mesmo ter seu registro cancelado.
O regulamento do ILP precisa antecipar e definir claramente como tratar essas situações:
A falta de regras claras para essas eventualidades introduz mais uma camada de incerteza. Lidar com essa dinâmica exige não apenas definições contratuais robustas (que frequentemente são negligenciadas por parecer um tema simples), mas também um sistema confiável de acompanhamento.
É justamente diante dessa complexidade que a qualidade e a rastreabilidade da fonte de dados se tornam ainda mais críticas. Na Pris, por exemplo, depois de muito amadurecer o tema com nossos clientes e parceiros, decidimos por utilizar dados extraídos diretamente da B3 quando lidamos com empresas listadas no Brasil.
Isso é feito para todos os componentes do cálculo: preços de fechamento, dividendos, JCP e o histórico completo de eventos societários. Essa integração direta com a fonte oficial garante não apenas a precisão, mas também a rastreabilidade total de cada ajuste e evento que impacta o TSR, seja da própria empresa ou de cada uma das empresas do grupo de comparação.
Percebemos que isso mitiga os riscos operacionais e oferece maior segurança na administração desses planos complexos.
Para garantir que o TSR cumpra seu papel de forma robusta e transparente, eliminando ambiguidades e riscos de litígio, é fundamental que o regulamento do ILP e os contratos de outorga sejam explícitos e detalhados.
Pela nossa experiência, as seguintes práticas são essenciais, apesar de raramente seguidas:
Adotar essas recomendações desde a concepção do plano de ILP transforma a complexidade operacional do TSR em um processo gerenciável, seguro e alinhado aos objetivos de governança.
O TSR continua sendo uma ferramenta poderosa de alinhamento entre gestão e acionistas. No entanto, seu sucesso não reside apenas na escolha da métrica, mas na execução impecável de seu cálculo e na clareza das regras que o governam.
A atenção aos detalhes dos eventos corporativos, a definição clara de fontes e metodologias, e a previsão de cenários como mudanças no grupo de comparação são cruciais para evitar que o "passado" do preço se torne uma fonte de "incerteza" no presente da aferição. Ignorar essas complexidades transforma uma métrica de alinhamento em potencial fonte de conflito.
Não há nada pior do que discutir a forma de apuração do TSR quando o período de apuração já aconteceu. Neste cenário, a discussão mistura o aspecto técnico, com o conflito de interesses, porque sabe-se de antemão qual das abordagens de cálculo gera mais ou menos ILP para os beneficiários.
Ao desenhar um plano de forma consciente – definindo regras claras, utilizando fontes de dados robustas e gerenciando os detalhes operacionais com rigor – as empresas podem usar o TSR de forma robusta e transparente evita esse tipo de mal estar, garantindo e permite que ele reflita, de fato, o valor entregue aos acionistas.
O caminho pode ser longo e exigir atenção aos detalhes, mas não precisa ser incerto.
Referências:
B3 S.A. - Brasil, Bolsa, Balcão. Manual de Precificação de Eventos Corporativos. Disponível em: https://www.b3.com.br/data/files/2C/B0/39/4D/AFA538101E311E28AC094EA8/Manual%20de%20Eventos%20Corporativos.pdf