A frase popularizada por Pedro Malan — “no Brasil, até o passado é incerto” — não se referia a programas de Incentivo de Longo Prazo (ILP), mas serve bem para descrever os desafios operacionais do Total Shareholder Return (TSR).
No artigo anterior sobre a ascensão do TSR como métrica de ILP, abordamos o crescimento das Performance Shares, sua relação com o alinhamento entre participantes e acionistas e o posicionamento das agências de governança sobre o tema.
No entanto, mesmo depois de decidir que o TSR será a métrica de performance, a definição de como será apurado o resultado é tão importante quanto — e é nesse ponto que o “passado incerto” se torna um problema real.
Este artigo mergulha nos desafios práticos do TSR: o impacto de eventos corporativos, tratamento dado a variações no conjuto de peers utilizados (o que normalmente ocorre quando a dompanhia utiliza TSR comparativo) e a crucial definição da fonte de dados – elementos que, se negligenciados, distorcem a métrica e abrem portas para questionamentos.
A fórmula do TSR: simples na teoria...
A fórmula clássica do TSR busca refletir o retorno total ao acionista:
À primeira vista, bastaria fixar o preço da ação na data da outorga (início), registrar o preço na data de apuração ou vesting (fim), somar os dividendos do período e aplicar a fórmula. Em um plano de 3 anos, pode parecer trivial — inclusive, já ouvimos isso de decisores quando tentamos alertar sobre os riscos de não se especificar os detalhes da apuração. Mas o mercado real não é estático — muito pelo contrário.
...complexidade na prática: o impacto dos eventos corporativos
Durante o período de aferição do ILP (que pode se estender por anos), a empresa e seus peers (no caso de TSR comparativo) podem realizar diversos eventos societários que alteram a estrutura de capital ou o preço nominal da ação, sem necessariamente mudar seu valor econômico instantâneo.
Além disso, podem passar por fusões, aquisições ou fechamento de capital, entre outros.
Eventos comuns que exigem ajustes:
- Desdobramento (Split): aumenta o número de ações, reduzindo o preço unitário proporcionalmente.
- Grupamento (Inplit ou Reverse Split): diminui o número de ações, aumentando o preço unitário.
- Bonificação em ações: distribuição de novas ações, diluindo o preço.
- Cisão (Spin-off): separação de parte do negócio em uma nova empresa.
- Cancelamento de ações em tesouraria: reduz permanentemente o número total de ações em circulação após uma recompra.
- Eventos de M&A ou fechamento de capital: o ticker da companhia pode deixar de existir, mudar ou continuar representando um novo negócio — dificultando a análise do TSR ao longo do período.
Se esses eventos não forem corretamente ajustados no cálculo do TSR — especialmente no preço inicial — o resultado será artificialmente inflado ou deflacionado, distorcendo a análise.
Ou seja, o indicador deixará de refletir o retorno genuíno que um acionista teria obtido mantendo o papel no período, ou a performance relativa das ações frente aos seus peers.
O Dilema da fonte de dados: por que os preços divergem?
Outro ponto crítico: qual preço usar? Diferentes plataformas (Yahoo Finance, Google Finance, Investing.com, provedores de dados como Bloomberg, home brokers, site da bolsa de valores) podem exibir preços históricos distintos para a mesma ação na mesma data.
A principal razão está na forma e quando aplicam ajustes por proventos e eventos corporativos. Algumas plataformas, como Bloomberg e Yahoo Finance, frequentemente mostram preços históricos já ajustados — o que facilita análises por analistas que não estão necessariamente preocupados com a apuração do TSR em um Plano de ILP.
Outras podem exibir o preço nominal do dia ou aplicar ajustes com critérios diferentes.
É aqui que reside uma das origens da “incerteza do passado”: se um administrador de um plano de ILP registrou o preço de fechamento exibido por uma plataforma na data de outorga (ou seja, “cravou o preço inicial”), ao consultar essa mesma plataforma anos depois para buscar aquele dado histórico, o valor poderá ter sido alterado devido a ajustes retroativos por dividendos, grupamentos, desdobramentos, bonificações etc.
Sem uma definição clara da fonte e da metodologia (por exemplo, se o preço a ser usado é o nominal do dia ou um já ajustado), surgem dúvidas e potenciais contestações.
Outro ponto crítico, especialmente em plataformas como a Bloomberg, que oferecem diferentes tipos de séries de preços (ex: “Price Return” vs. “Total Return”), é o risco de dupla contagem de dividendos.
Se a curva de preços utilizada no cálculo do TSR já incorpora o efeito dos dividendos, somar novamente os dividendos na fórmula resultará em uma supervalorização artificial do TSR. É essencial entender qual tipo de preço a fonte fornece e ajustar a fórmula do TSR de acordo.
O caso Klabin (KLBN11): um retrato da incerteza
O exemplo da Klabin (KLBN11), em maio de 2024, ilustra bem o problema. Após eventos como pagamento de dividendos e bonificação, diferentes fontes apresentaram valores de fechamento divergentes para a mesma data:
- Investing.com (06/05/2024): Fechamento R$ 19,96
- Infomoney (06/05/2024): Fechamento R$ 20,00
- Yahoo Finance (06/05/2024): Fechamento R$ 20,82 (sem ajuste de dividendos, mas com ajuste de bonificação) e R$20,26 (com ajuste de bonificação e dividendos)
- API da Pris para processamento dos dados históricos B3: Fechamento de 22,92 (sem efeito de bonificação e dividendos)

Essas diferenças, que podem parecer pequenas à primeira vista, podem representar variações relevantes no cálculo do TSR, gerando insegurança jurídica se a fonte e a metodologia não estiverem pré-definidas.
Essa diferença, que à primeira vista pode parecer pequena, pode gerar impactos significativos na apuração do TSR, acarretando grande insegurança jurídica caso a fonte de dados e a metodologia de cálculo não estejam previamente definidas.
A complexidade adicional do TSR relativo
Se o cálculo do TSR absoluto já demanda rigor, o TSR relativo — quando comparado a um índice de mercado ou grupo de pares — amplifica ainda mais a complexidade. A administração do plano precisa:
- Monitorar todos os eventos corporativos (dividendos, splits, grupamentos, bonificações, cisões etc.) de todas as empresas do índice ou peer group ao longo de todo o período.
- Aplicar os ajustes corretos aos preços de cada uma dessas empresas, utilizando a mesma fonte e metodologia previamente definidas.
Mas a complexidade não termina aí. E se uma empresa do grupo de comparação — seja parte do IBrX-50 ou de um peer group personalizado — deixar de ser negociada durante o período de vesting? Empresas podem ser adquiridas, fundidas, mudar de bolsa ou até mesmo serem deslistadas.
O regulamento do ILP precisa antecipar essas situações e definir com clareza como elas serão tratadas:
- A empresa será simplesmente removida do cálculo a partir do evento?
- Seu TSR será calculado até a data do evento e congelado?
- Em caso de fusão ou aquisição, qual TSR será considerado: o da empresa original, o da nova entidade ou ambos?
- Se uma empresa sair do índice de referência (como o IBrX-50), ela permanece no cálculo do ILP? Ou será substituída? Por quem? Como?
- Existe um número mínimo de peers necessários para a validade do ranking? Em caso de fechamento de capital ou M&A, um novo peer deve ser inserido?
A ausência de regras claras para esses cenários adiciona uma nova camada de incerteza. Lidar com essa dinâmica exige definições contratuais robustas — que, muitas vezes, são negligenciadas por parecerem questões operacionais simples — e um sistema confiável de monitoramento.
É justamente diante desse grau de complexidade que a qualidade e a rastreabilidade da fonte de dados se tornam ainda mais críticas. Na Pris, por exemplo, após amadurecer esse tema em conjunto com nossos clientes e parceiros, optamos por utilizar dados extraídos diretamente da B3 no caso de empresas listadas no Brasil.
Isso inclui todos os componentes do cálculo: preços de fechamento, dividendos, JCP e o histórico completo de eventos societários.
Essa integração com a fonte oficial garante não apenas precisão, mas também rastreabilidade total de cada ajuste ou evento que impacte o TSR — seja da empresa outorgante ou de qualquer integrante do grupo de comparação.
Com isso, mitigamos riscos operacionais e oferecemos maior segurança para a gestão de planos complexos.
Estabelecendo regras claras e mitigando Riscos: recomendações essenciais
Para garantir que o TSR cumpra seu papel de forma robusta e transparente, eliminando ambiguidades e riscos de litígio, é fundamental que o regulamento do ILP e os contratos de outorga sejam explícitos e detalhados.
Com base na nossa experiência, listamos abaixo práticas essenciais — embora ainda pouco adotadas:
- Definição contratual da fonte oficial de dados: estabelecer inequivocamente qual será a fonte primária para preços (abertura, fechamento etc.) e dados de eventos societários. Para empresas listadas no Brasil, a B3 deve ser a referência principal, garantindo alinhamento com os dados oficiais de liquidação e custódia.
- Padronização da metodologia de ajuste: detalhar como os preços, especialmente o inicial, serão ajustados para cada tipo de evento (dividendos, JCP, splits, grupamentos, bonificações, cisões etc.). A melhor prática é referenciar a metodologia oficial da B3, como o Manual de Precificação de Eventos Corporativos, ou descrever procedimento equivalente no regulamento, assegurando uniformidade e auditabilidade.
- Detalhamento da fórmula e dos critérios de cálculo: ir além da fórmula básica do TSR. Especificar como os dividendos serão tratados (serão reinvestidos? Somados ao final?), se haverá uso de médias de preços (ex: média de 30 dias no início e no fim para suavizar a volatilidade), critérios de arredondamento e o tratamento de situações específicas.
- Regras para o grupo de comparação (TSR relativo): o regulamento deve prever o tratamento de fusões, aquisições, deslistagens, mudanças de bolsa e saídas do índice por parte das empresas do grupo comparativo. A ausência dessas regras é uma das principais fontes de insegurança jurídica em planos baseados em TSR relativo.
- Garantia de expertise e ferramentas adequadas: administrar corretamente um plano baseado em TSR exige conhecimento técnico, capacidade de monitorar eventos de mercado, aplicar ajustes corretos e lidar com a dinâmica do TSR relativo. É crucial contar com uma equipe interna especializada ou plataformas especializadas (como a da Pris) que garantam precisão, rastreabilidade e conformidade.
Adotar essas práticas desde a concepção do plano transforma a complexidade do TSR em um processo estruturado, confiável e alinhado às melhores práticas de governança corporativa.
Conclusão: como garantir um TSR confiável e livre de conflitos
O Total Shareholder Return (TSR) é uma das métricas mais eficazes para alinhar os interesses da gestão com os dos acionistas. Mas seu verdadeiro valor não está apenas na escolha da métrica em si, e sim na execução precisa do cálculo e na clareza das regras que o regulam.
Discutir a metodologia de apuração após o término do período de vesting é um erro comum — e perigoso. Quando os resultados já estão sobre a mesa, qualquer escolha metodológica acaba sendo contaminada pelo conhecimento prévio de qual abordagem favorece mais ou menos os beneficiários.
O debate, então, deixa de ser técnico e se torna um jogo de forças entre as partes envolvidas.
Um plano de ILP robusto requer:
- Regras claras e antecipadas sobre como o TSR será calculado.
- Fontes de dados confiáveis e rastreáveis (como a B3 para empresas brasileiras).
- Tratamento pré-definido de eventos excepcionais no peer group ou índice de referência.
- Rigor na execução operacional, com apoio de especialistas ou plataformas especializadas.
Adotar uma abordagem consciente desde o desenho do plano evita surpresas desagradáveis no futuro, fortalece a governança e preserva o papel do TSR como indicador legítimo de geração de valor ao acionista.
O caminho pode ser técnico e cheio de nuances — mas com planejamento e execução criteriosa, ele é plenamente navegável.